sábado, 28 de fevereiro de 2009

Conversas de Café 08



Manifesto Teatral


Vamos entrar no mês de Março, que em Cabo Verde tem sido desde 1999, o “Mês do Teatro”, pelo facto de no dia 27 de Março ser Dia Mundial do Teatro, e de durante todo o mês a Associação Mindelact e grupos de teatro um pouco por todo o arquipélago promoverem actividades ligadas às artes cénicas, com destaque, naturalmente, para a apresentação de peças de teatro. Por me ter sido solicitado que abordasse esta temática decidi, depois de participar em mais de 50 peças enquanto encenador, actor, cenógrafo ou dramaturgo, publicar o meu Manifesto Teatral. A forma como abordo a criação artística nesta área e a experiência adquirida ao longo de cerca de 20 anos de carreira permite-me que torne público este texto, mais do que uma manifestação de intenções, um espelho da forma como venho encarando a actividade profissional nesta área, parte vital da minha vida. 

1. É fundamental que haja focos, pontos de partida para a criação, sons que permanentemente nos avisam e ajudam a não cair em soluções espontâneas que são rasteiras sempre presentes, porque muitas vezes a nossa mente tende a escolher, até pela forma como vem sendo moldada pela cultura da globalização, os caminhos mais fáceis. Este é um manifesto que se baseia em alguns conceitos fundamentais, a partir dos quais procuro nortear a criação no domínio das artes cénicas: Criatividade, Coerência, Concepção, Estudo, Exigência, Experimentação, Humildade, Trabalho e Partilha. 

2. Nada acontece por acaso. No teatro, a arte da transparência, menos ainda. Para se conseguir um bom resultado é fundamental pesquisar, preparar, definir e fundamentalmente trabalhar. Trabalhar muito. Um espectáculo de teatro vive do momento, da sequência dos instantes, da procura da perfeição em cada segundo (que nunca é alcançada). A diferença entre um bom e um mau espectáculo de teatro está relacionada, na maior parte dos casos, com a maior ou menor atenção que damos aos pormenores. Peter Brook, o mais importante encenador do século XX, escreveu: “não há segredos”, e é verdade. O trabalho de um encenador é o mesmo do de um artesão, onde não há lugar para falsas mistificações nem para pretensos métodos mágicos. Não há teatro feito por geração espontânea. Fazer bom teatro dá muito trabalho. Exige enormes sacrifícios. Pede tempo e disponibilidade. [Trabalho]

3. O maior perigo do sucesso e da aceitação do público, e isso é claro em quase todas as áreas, é a acomodação. Como se descobríssemos uma fórmula, que repetimos até à exaustão, até porque se já resultou uma vez, vai certamente resultar noutras. Nada mais errado. A acomodação leva ao desleixo, o desleixo ao facilitismo e se há algo que aprendi neste ofício é que o público não é estúpido, antes pelo contrário. Hoje, exige-se ao processo de criação uma velocidade que corresponda às exigências da modernidade e essa é a sua maior armadilha. O tempo passou a ser um luxo. A reflexão um bem de terceira necessidade. Daí a urgência de exigirmos de nós próprios cada vez mais e não nos deixarmos cair nas tentações do mercantilismo e do aplauso fácil. Tenhamos, pois, como meta primeira fazer melhor que a produção anterior. É um excelente princípio. [Exigência]

4. No teatro tudo é possível porque parte de uma matriz fantástica (e de certa forma angustiante) para o processo de criação: o espaço vazio. Para preencher este espaço vazio devemos utilizar a criatividade de forma a que possamos conceber uma peça onde seja possível estar sempre um passo à frente de quem o vê. Quero com isto dizer que a previsibilidade é o veneno mortal da arte cénica. Porque provoca o desinteresse, o tédio e com este o maior de todos os sintomas, os ruídos oriundos da plateia, paladinos do aborrecimento: tosse, papeis, telemóveis a tocar. E esta abordagem de que tudo é possível é também ela uma armadilha, porque denota uma possibilidade de anarquia absoluta. Não caiamos nisso, porque como se disse no ponto anterior, o rigor e a disciplina têm que estar sempre presentes e com estes a capacidade de surpreender, sempre e a qualquer momento. Que nome se dá a essa competência? Criatividade, simplesmente. [Criatividade]

5. Entre a necessidade de reflexão, de trabalho, de disciplina e a liberdade inerente ao “tudo é possível”, ao espaço vazio e ao acto de criação em si, há um campo vasto de possibilidades a experimentar. “Por isso não há receitas prontas. Permanecer muito tempo na profundidade pode tornar-se aborrecido. Permanecer muito tempo no superficial logo se torna banal. Permanecer muito tempo nas alturas pode ser intolerável. Temos que estar em movimento o tempo todo.” Este parágrafo da autoria de Brook define bem aquela que é uma das características mais genuínas da arte teatral: a experimentação. Agora que já passamos da época em que se chamava experimental a tudo e mais alguma coisa sem a mínima noção do que esse termo realmente significava, talvez lhe possamos dar o devido valor. Tentar ser melhor passa também por descobrir novos caminhos, novas estéticas, novas temáticas, novas abordagens, novas técnicas. [Experimentação]

6. Para que o teatro viva e conserve a sua frescura, deve constantemente arriscar-se, confrontar-se, aventurar-se em novos mundos e é por isso que experimentar é nesta arte tão vital como respirar. Diria mesmo que a experimentação é o reflexo respiratório da arte cénica, o que faz com que esta se renova permanentemente e combata aqueles que são os seus grandes inimigos: o tédio, o aborrecimento, a repetição de fórmulas gastas, a manutenção de um estado senil incompatível com o ser e fazer arte. Mas experimentar não é lançar a concepção criadora para um abismo sem retorno. Pressupõe um domínio de determinadas técnicas, um estudo prévio, uma preocupação em conhecer os antecedentes das linguagens que se pretendem explorar. Experimentar implica também conhecer, ir mais além, procurar profundidade numa época em que a ligeireza domina quase todos os parâmetros da nossa vida social e cultural contemporânea. [Estudo]

7. O teatro é um espelho multifacetado das diferentes realidades que o rodeiam, mas não é certamente espelho de si próprio. Uma peça de teatro é concebida para que alguém a veja. Sendo assim, vai ser sujeita a um escrutínio que não nos deve fazer reféns mas também não nos pode deixar completamente indiferentes senão algo deixa de fazer sentido. E sabendo que o público vai para o teatro para se emocionar, para fazer parte de uma aventura comum, isso obriga a uma contínua introspecção e escuta atenta da parte de quem faz. Auscultar os outros, talvez seja este o acto que melhor define a humildade artística, considerada aqui como uma espécie de grilo falante que nos avisa, em momentos precisos, que se calhar não somos assim tão geniais e que não nos devemos levar tão a sério. O facto de o teatro ser a arte da partilha por excelência faz com que quem nele esteja envolvido se obrigue a questionar. Não tenhamos, pois, a pretensão de que aquilo que fazemos é automaticamente interessante, nem reclamar que os outros é que são ignorantes quando não alcançamos o pretendido. É importante saber escutar os silêncios, as opiniões, as criticas, os elogios, os abandonos, os abraços. Assimilar e seguir em frente. [Humildade]

8. No teatro cabe (quase) tudo. A arte de representar, a arquitectura, as artes plásticas, a música, a moda, a óptica, o som, a luz, os cheiros. Daí também o perigo de se tornar uma amalgama sem sentido. Parece-me fundamental que num campo tão vasto como este haja a preocupação de saber combinar todos estes elementos de forma coerente. Saber jogar com os materiais, com as cores, com os tecidos, com os sons, com os registos dos actores e fazer do todo uma obra de arte que tenha, no mínimo, qualidade estética e clareza conceptual. Por isso o teatro é a arte dos detalhes. Isso obriga a uma atenção redobrada sobre todos os aspectos envolvidos e a uma capacidade de encarar a montagem de uma peça de teatro como um processo colectivo, com muitos criadores envolvidos. Para que funcione, é importante que todos caminhem num sentido definido, claro, concreto, resultado de um profundo debate e questionamento, é certo, mas cujo resultado final nos faça estar perante um quadro harmónico, pictórico, energético e humano coerente consigo próprio. [Coerência]

9. Finalmente dizer que se a partilha é o que faz do teatro aquilo que ele é, torna-se claro que “a base do ofício teatral consiste em estabelecer com o público, a partir de elementos muito concretos, uma relação que funcione”, como escreveu Brook. Isto não implica que se tenha que fazer concepções, como tantas vezes se quer fazer querer. Mas tem que haver respeito. O público reconhece, antes de tudo, a qualidade. E premeia-a, sem contemplações. Claro que há plateias mais difíceis e outras mais dóceis, mas nem as primeiras tem que ser encaradas como inimigas nem as segundas como condescendentes. O ideal é conseguir uma plateia que goste realmente de teatro. Essa é uma bênção, porque resulta numa troca energética entre um grupo de pessoas que vive uma convenção – a convenção teatral - num mesmo comprimento de onda. Por isso o confronto da obra cénica com o seu receptor final é o culminar de um longo, doloroso, paciente e complexo processo criativo, cujo resultado é sempre imprevisível mas quase sempre justo e reflexo do investimento pessoal e colectivo nele depositado. [Partilha] 

10. Quanto ao resto, é como o próprio teatro, nasce e morre. Tudo é efémero. É importante que não nos levemos demasiado a sério e que este manifesto possa ser lido como um roteiro de uma viagem, num mundo que permite múltiplos itinerários a tantos outros destinos que não tem que adoptar nada do que aqui é defendido. É provável que eu próprio, daqui a alguns anos, leia este texto e que, como quem lê uma carta de amor que se escreveu na adolescência, sorria e, envergonhado, o arrume sem contemplações no baú das memórias mais longínquas. 

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Conversas de Café 07


Bloguices

Este mesmo semanário lançou na sua última edição a pergunta, “porquê ter um blogue?” E nada como ocupar este espaço para reflectir um pouco sobre a minha experiência pessoal enquanto editor de um blogue, neste caso, o Café Margoso, nascido a 27 de Dezembro de 2007.

Por definição, um blogue (ou blog, ou weblog) é uma página na internet, cuja estrutura permite a actualização rápida a partir de acréscimos de tamanho variável, chamados artigos (ou posts). Estes encontram-se geralmente organizados de forma cronológica inversa e podem ser escritos por uma ou várias pessoas. A ilustração dos artigos também é muito simples a partir de procedimentos de fácil execução. Um blogue é uma página pessoal – ou colectiva, no caso do blogue ter vários autores – cujos conteúdos variam na mesma proporção ao aumento exponencial destas páginas no mundo virtual. Para se ter uma ideia, em 2007, todos os dias eram criados 120 mil novos blogues, três a cada dois segundos! Em Março de 2005, eram criados 25 mil blogues por dia, e este diferencial permite-nos extrapolar que no dia de hoje, no início de 2009, estarão a ser criados cerca de 200 mil novos blogues em todo o mundo! Quando terminar de ler este artigo é muito provável que novos 1.500 blogues tenham entrado na grande rede global. Nos Estados Unidos da América, por exemplo, os blogues já são mais lidos do que os jornais tradicionais e por eles passou muito da estratégia eleitoral que levou Barack Obama até à sala oval da Casa Branca.

O que começou por ser um pequeno movimento tomou-se hoje num fenómeno de proporções extraordinárias. E sobre a importância dos blogues à escala mundial, nada como recorrer ao italiano Giuseppe Granieri, um dos maiores especialistas de comunicação e cultura digital, autor de um aplaudido livro denominado Geração Blogue, onde faz uma exaustiva análise deste fenómeno. Diz ele que graças aos blogues, e aqui está a grande novidade, a rede modificou-se: a sua difusão finalmente ligou milhões de pessoas, convertendo-a de rede de conteúdos em infra-estrutura de discussão. “Nesta perspectiva, os blogues são o anel que faltava entre uma aspiração planeada há anos e a sua realização prática. “

Sendo certo de que há momentos em que dou aos blogues cabo-verdianos uma importância que (ainda) não tem, outros há em que me parece que estes têm mais importância do que se quer fazer crer. “Com os blogues”, escreve Granieri, “às enormes potencialidades da relação já implícita na rede vieram juntar-se as facilidades de acesso, a capacidade de memória e as possibilidades de pesquisa (...) Mas diferentemente dos outros instrumentos, os blogues reagrupam os conteúdos por pessoa, fornecendo aos indivíduos um instrumento de identificação fortíssimo. Isto facilita a relação quer entre sujeitos que já se conhecem, quer com sujeitos que iniciam um novo contacto a partir do zero.” A minha experiência pessoal confirma isto mesmo: desde que iniciei o Café Margoso, conheci pessoas novas, muitas outras passaram-me a conhecer um pouco melhor, até porque, como diz Paolo Valdemarin, “é muito mais fácil conhecer a fundo um blogueiro que se lê todos os dias do que um colega de trabalho.” Estou ainda convencido de que a existência de uma rede, mesmo que pequena e em estado embrionário como a dos blogues cabo-verdianos – todos distintos, com diferentes objectivos, natureza, alcance e ambição – traçou pontes entre o Norte e o Sul do arquipélago que são sempre de aplaudir num pais que facilmente tem a tendência quase suicida de se deixar cair num bairrismo retrógrada, com laivos de preconceito à mistura. Aliás, não concordo nada com essa visão existente em alguns sectores que insistem em classificar esta pequena e ainda incipiente rede blogueira crioula como um ciclo fechado e mutualista, de natureza quase maçónica, carregado de umbigos, palmadas nas costas e masturbações individuais e colectivas. Já escrevi sobre isso, e nunca é demais repeti-lo: quem quer ter um blogue pode tê-lo, à distancia de meia dúzia de cliques. E o grande desafio não é ter um blogue, é mantê-lo. Como se pode classificar os blogues um meio fechado se nascem cerca de 200 mil novos blogues novos em todo o mundo a cada dia que passa? Além de que, ter um blogue não é a única forma de participar nesta Grande Conversação. Uma das características mais interessantes dos blogues, assim como dos Fóruns, é permitir um diálogo permanente entre o emissor e os receptores dos textos, e entre os receptores entre si. Alguns dos mais acesos e interessantes debates sobre assuntos da actualidade crioula, viveram-se no universo dos blogues, dos seus artigos e comentários. 

Ainda Granieri: “As relações que se instauram são sólidas, visto que a profundidade da relação que se alcança através daquilo que se escreve e lê, é nitidamente superior à que se pode obter em muitos casos de relações pessoais fora da rede. De facto, são diferentes os tempos e os modos de relacionamento. Ao manter um blogue empenhamo-nos por completo e exprimimo-nos com a ponderação certa, que a escrita permite e que a expressão oral por vezes nega. No blogue aprofundamos, limamos, desenvolvemos o nosso pensamento de um modo que, sem este traçado cronológico, não seria possível.” Ou seja, as pessoas passam a conhecer as nossas ideias, as nossas opiniões e as nossas preferências. E interagem connosco. No meu caso pessoal, devo dizer que o facto de ter um blogue me obriga a uma reflexão diária dos acontecimentos da actualidade, a uma permanente procura de fontes de conhecimento, a uma busca das minhas próprias memórias, à leitura diária de poesia, a uma revisão de conceitos, a uma conceptualização de temáticas necessariamente mais ponderada. 

Cada um tem o seu blogue por alguma motivação. Essa motivação pode ser pessoal, certamente. Mas acredito que a maioria, pelo menos no caso da blogosfera cabo-verdiana, o faz porque pensa que dessa forma pode contribuir e que esse é um exercício de cidadania como qualquer outro. Como escreveu o blogueiro português Marcos Santos, um blogger generoso é “alguém que gasta horas não a coçar os seus poéticos tomates, mas a valorizar o espírito de partilha, a vontade de transmitir e receber conhecimento, dar e receber ideias, alguém que escreve pela música, pelo cinema, pela arte, pela ciência, por aquilo em que acredita, enfim, pelas pessoas. Muitos não têm um décimo do reconhecimento que merecem, mas são eles os responsáveis pelos verdadeiros blogues de topo, as referencias da blogosfera. Podem ser culturais, mas não são elitistas, políticos sem ser politiqueiros, polémicos mas sem usar a maledicência ou a calúnia.” Esta citação, referente ao universo dos blogues portugueses, um dos países da Europa onde este fenómeno tem maior expressão, não é de todo desprovido de paralelos com a realidade cabo-verdiana. Se bem que, como escreveu Jorge Tolentino no seu blogue Passageiro em Trânsito, a blogosfera crioula ainda agorinha arrancou, enquanto fenómeno com expressão mediática e que muito caminho há ainda a percorrer. Não quero com isto dizer que apenas agora começou a haver blogues em Cabo Verde nem diminuir quem por aqui anda há muito mais tempo do que eu. Quem não se lembra, com alguma saudade, do Lantuna, da Matilde Dias? Ou o que dizer da também jornalista Margarida Fontes que mantém o seu espaço há mais de quatro anos? Agora parece-me claro que o fenómeno blogueiro, enquanto espaço de comunicação, debate, cidadania, intervenção critica construtiva, amplo e alargado a um maior número possível de pessoas, está apenas a arrancar em Cabo Verde.

E volto à questão de partida. Porquê um blogue? Bem, para falar a verdade quando comecei não fazia nenhuma ideia do que pretendia nem qual o rumo tomar. Procurei que o Café Margoso fosse um “lugar” onde recebo amigos, conhecidos e desconhecidos, como nos cafés de antigamente, onda as tertúlias e os debates acompanhavam sempre o café ou o chá, então e quase, meros pretextos. E procurei esse fosse um lugar ou um pretexto para estar, falar, opinar, rir, emocionar, ver, escolher, perguntar, declarar, desaforar, convidar, ouvir e ver, escolher, criticar, perguntar, para construir pontes, enfim, para partilhar. Durante este período aprendi imenso, ganhei novos amigos, aproximei-me do Sul e terei ganho algumas inimizades. Certamente errei algumas vezes, exagerei outras, fui imprudente e até injusto. Mas procurei sempre não calar, não censurar, não desqualificar, não desvalorizar, não temer e não cegar nada nem ninguém. 

Há quem faça blogues por gostar de se ver ao espelho? Por gosto? Por diversão? Porque lhes apetece? Naturalmente. Problema de quem os faz e de quem os visita. O universo blogueiro é totalmente livre, para o bem e para o mal, e embora tenha sempre presente as palavras de um amigo que me dizia há dias que “isto dos blogues é uma pura perda de tempo”, não deixo de me lembrar também da frase de Machado de Assis que diz: “palavra puxa palavra, uma ideia traz outra, e assim se faz um livro, um governo, ou uma revolução.”

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

Conversas de Café 06



Outside & Inside

Outside

A série televisiva 24 horas, que já vai na sua sétima temporada, teve um sucesso estrondoso em todo o mundo e, no que me diz respeito, marcou-me de uma forma positiva e negativa em dois aspectos. Pela positiva, por ter quase que "adivinhado" a possibilidade de ter um afro-americano na Casa Branca, quando na primeira temporada surge com o senador e principal candidato presidencial David Palmer, que na temporada seguinte não só é Presidente, como é um excelente Presidente. A ligação deste personagem com a actualidade é inevitável. Mas a série também marcou negativamente porque de alguma forma funcionou como um instrumento da banalização da tortura, já que o seu personagem principal, o agente Jack Bauer, nunca hesitou em utilizar métodos violentos e coercivos nos seus interrogatórios, secretos e ilegais, por estarem em causa assuntos de "máxima segurança nacional".

Toda a estrutura das várias temporadas, com a psicose do terrorismo e a forma de o combater a dominar os acontecimentos, só teria sido possível com o ambiente, as chantagens, psicoses e legislação criados durante os mandatos de George W. Bush nos Estados Unidos. Este bem que pode merecer o aplauso da página 7 do jornal A Semana, mas Bush e a sua administração, com o sinistro vice Dick Cheney à cabeça, foi o principal responsável por muitas das violações dos direitos humanos ocorridas durante os últimos anos, inclusive dentro do seu próprio território nacional. Aliás, a principal vantagem destes oito anos, se é que se pode escrever isto assim de animo leve, foi o facto deste reinado de Bush ter sido tão mau, que fez com que um mais que improvável candidato não só vencesse as eleições, como aparecesse aos olhos do mundo como um novo Messias. Miguel Sousa Tavares, na sua última crónica no jornal português Expresso, diz isso mesmo, e com todas as letras:

“Mas foi preciso que o governo de Bush fosse de tal maneira calamitoso aos olhos de todos, para que a grande nação americana, feitas de brancos, de negros, de latinos, de asiáticos, percebesse que o que agora estava em causa era a própria sobrevivência dos Estados Unidos. E, por isso, a mensagem e a imagem de radical mudança de paradigma protagonizada por Obama foi crescendo aos poucos, como uma bola de neve, até ele próprio adquirir quase uma dimensão de Messias, para o que, obviamente, não pode estar preparado. Como se tantos e tantos anos de malfeitorias pudessem ser redimidos e reparados por um simples acto de contrição colectivo! Não podem: o que Bush destruiu paulatinamente demorará anos e anos a reconstruir.”

Ora, Barack Obama ainda nem teve tempo para aquecer a cadeira da sala oval da Casa Branca mas parece querer dar a volta a esta realidade o mais depressa possível. Senão vejamos o que o novo presidente conseguiu, durante o dia que passou:

1. Ordenou o encerramento, o mais depressa possível, dos centros de detenção que a CIA mantém actualmente no estrangeiro para os suspeitos de terrorismo;
2. Decretou igualmente que os Estados Unidos da América ajam em conformidade com as convenções de Genebra no modo de actuação para com os prisioneiros de guerra. Essas convenções, e a sua aplicação aos suspeitos de terrorismo, eram contestadas pela Administração Bush. Esta medida é claramente um afastamento das técnicas de interrogatório empregadas até ao momento pela CIA, denunciadas em variadíssimas ocasiões como actos de tortura;
3. Decretou o encerramento do centro de detenção de Guantánamo, Cuba, dentro de um ano, marcando definitivamente uma ruptura com a anterior política de luta antiterrorista de Bush. Obama assinou o decreto que põe fim a Guantánamo na Sala Oval, rodeado de militares na reserva, dando maior simbolismo ao acto.

Está-se mesmo a ver que os homens que inventam os argumentos para séries televisivas como o 24 horas, tem que mudar a direcção das suas bússolas ideológicas. Como foi escrito, com uma certa piada, num blogue português, "a Sala Oval tem agora um presidente que faz questão em cumprir promessas. O presidente Obama arrisca-se a criar um grave precedente para todos os políticos, e não só americanos." Estranho não é? Em menos de 24 horas e já anda por aí a cumprir promessas. Apenas um bom começo ou vem mesmo aí uma nova era?

Inside

Nestes dias que se fala tanto de crise não seria mal falarmos um pouco de outras crises que teimam em não nos querer largar, de tal forma estão enraizadas na nossa forma de ser. Uma questão de mentalidades, dirão uns. Só com uma revolução geracional poderemos ultrapassar isto, dirão outros. Pois muito bem, assim sem muitas papas na língua, vivemos neste momento, de forma evidente, duas outras crises: a crise da aceitação da critica e a crise da falta de humor. Vamos falar hoje apenas da questão da critica, mas sem antes deixar aqui uma frase de Mário Lúcio Sousa, a propósito da segunda referida: ““Depois da fome, duas desgraças podem arrasar uma Nação (falo de Nação e não de Estado, país ou Pátria): A morte do Teatro e a agonia do Humor. A música e as outras formas de expressão até que podem ser bravos exercícios de solidão. Inclusive o amor está concebido para ser executado a mano solo - por isso Deus a cada um deu o seu inseparável sexo - e é o monólogo a mais antiga das sabedorias. Mas, o teatro e o humor são vícios que não se praticam a sós. Ninguém ri dos seus infortúnios. Prova desse milagre é que cócegas em sovaco próprio não arrancam gargalhadas. “

Mas o que não tem nenhuma piada mesmo é a falta de equilíbrio com que recebemos uma critica, seja ela boa ou má. É uma mentalidade que faz com que seja complicado, e haja mesmo que se sinta condicionado por causa disso, elogiar ou criticar seja o que for, seja em que circunstância for, sabendo que ao fazê-lo se está sujeito a ser de imediato tachado publicamente de arrogante ou lambe botas. Assim, e de forma resumida, quem critica negativamente, é porque está cheio de inveja ou faz dessa critica um instrumento de vingança pessoal; se elogia, é porque é um amigalhaço, primo, cunhado ou alguém a quem deve um favor pago desta forma. Isto também tem uma outra vertente de análise muito local, e que urge alterar: elogiar alguém, de determinada área profissional, não implica desconsiderar todos aqueles que trabalham ou exercem a sua profissão na mesma área. Elogiar o trabalho de um artista plástico, por exemplo, não implica que se esteja a afirmar que todos os outros não tem valor. Mas é um pouco isso que acontece. “Então aquele tipo está a elogiar a Luísa Queirós, então e eu?”. “Não entendo o que tem ele contra mim, para dizer tão bem da pintura do Tchalé Figueira!”. Acho que nem é preciso estar a explicar o quanto tudo isto acaba por cair no ridículo, mas a verdade é que não temos a mínima capacidade para encaixar uma critica, seja para nós, seja para os outros. Quando é para nós, e se a critica é positiva, ficamos logo com o rei na barriga, o ego multiplica-se à máxima potência, o nosso umbigo passa a ser, por inerência, o centro do Universo. Os que assistem de fora bem se podem roer de inveja, bem podem falar que fulano ou sicrano foi colega de escola, pouco importa. Se a critica é negativa, a reacção dá-se por três fases: numa primeira aceitamo-la, como quem leva um tiro e ainda não sente a dor real do ferimento. Essa é a segunda fase: começamos a remoer o que foi dito, e caramba!, dói como tudo, e começamos a pensar, olha que isto não é bem assim, fomos mal entendidos; até que alcançamos a terceira e última fase, com o aparecimento vulcânico de uma fúria latente, resumida na simples frase “o que é que este energúmeno pensa que é para estar a criticar o meu trabalho ou a minha pessoa?!”

Devo sublinhar que isto não é apenas, certamente, característica nossa. Talvez faça parte da natureza humana ser-se assim. Mas que o cabo-verdiano encaixa mal, lá isso encaixa. E aqui quero sublinhar que no meu caso, que sou criador da área do teatro, não sou nada imune ao que aqui foi escrito nem me ponho de parte desta análise. Antes pelo contrário, o meu ego é um animal terrível que umas quantas vezes foge ao controle do seu dono e as fases de aceitação, dúvida e birra, de uma critica ao meu próprio trabalho já fizeram parte de experiências vivenciais e porventura continuarão a fazer. Isto é também uma auto-critica, portanto. Quando ler este texto impresso no jornal e me encontrar com a minha imagem no espelho, vou certamente perguntar-me, “quem é que este obnóxio pensa que é para estar a criticar o meu trabalho ou a minha pessoa?!”.

Seremos com toda a certeza o maior inimigo de nós próprios, se não melhorarmos este aspecto e lutarmos contra ele. Percebe-se, pois, que hajam tão poucos a escrever abertamente sobre o que os rodeia nestas ilhas afortunadas. E os que o fazem são logo adjectivados, de serem isto ou aquilo. Deixem-se lá de tretas. Ouçam. Aprendam, mesmo com as criticas que considerem injustas ou mal intencionadas. Há sempre alguma lição a tirar de alguém que utilizou algum do seu tempo para fazer um julgamento critico da nossa actividade. Mesmo que seja maldosa ou graxista. Mas não partamos desse pressuposto. E, sobretudo, encaremos tudo isto com mais desportivismo. Falem bem de mim, falem mal de mim. Mas falem.