quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Conversa de Café 01




O que é Nacional é bom

Nunca mais me esqueci do discurso que o Primeiro-Ministro, José Maria Neves, há uns anos atrás, proferiu em S. Vicente no encerramento de um Fórum sobre o desenvolvimento da ilha do Porto Grande. Uma longa intervenção, de improviso, de cerca de uma hora ou mais, que me deixou espantado, não só pela excelência da intervenção, como pela capacidade de raciocínio, assim como pelo próprio discurso e seu conteúdo, naquela que terá sido a mais bem elaborada declaração de amor que já ouvi fazer à minha ilha, campanhas eleitorais incluídas.

Ao ler a longa conversa de José Maria Neves com Carlos Veiga, no jornal A Semana, mais uma vez constatamos que ali está um homem com uma fé imensa no seu país e no seu povo, que acredita, que se entusiasma, que quer fazer mais e melhor. Mesmo que queira seguir por um caminho diferente daquele que nós pensamos ser o melhor, a verdade é que estamos perante um «acreditador militante» (isto para «roubar» o termo a um amigo meu). Nessa longa entrevista, concluímos da vontade, da necessidade, da urgência de se investir, cada vez mais e melhor, na justiça, na educação, na saúde, na segurança, no apoio às PME, na economia, na agricultura, na bolsa de valores, no futuro tribunal constitucional, na energia, no ambiente, nas infra-estruturas rodoviárias, nos portos e aeroportos. Quando chegamos à área da cultura, a conversa, estranhamente, muda de rumo, o que me custa um bocadinho a entender, não só por ser a área sensível que é, mas por vir da voz de alguém que afirmou há bem pouco tempo que «a cultura tem feito mais pelo país do que qualquer Governo.»

Pois é!, quando chegamos à vertente cultural da governação, deixa de haver essa tal vontade, necessidade e urgência de o Estado investir, pelo menos na mesma perspectiva e da mesma forma descomplexada com que é assumida para qualquer outra área de intervenção do Estado. Fala-se desse tremendo equívoco que é a Indústria Cultural como se fosse uma fórmula mágica que resolverá todos os problemas (um tema a que voltarei, certamente, numa próxima crónica) e em evitar a subsídio-dependência, porque os artistas, no fundo, não querem trabalhar. Na educação, na saúde, na justiça e no desporto, assume-se, de forma apaixonada, a importância do Estado investir em mais escolas e professores, mais hospitais, centros de saúde e médicos, mais tribunais e juízes, mais estádios e gimnodesportivos. Na cultura, fala-se de, a todo o custo, «evitar a estatização da cultura». Quer dizer, com a actual crise mundial, temos as maiores economias do planeta a nacionalizar grandes bancos e seguradoras, a colocar o mito do mercado livre como sistema mais-que-perfeito em causa, algo impensável há alguns anos atrás. Em Cabo Verde, temos um Auditório Nacional com uma gestão privada! Não faz qualquer sentido.

Jorge Tolentino, ex-Ministro da Cultura, embora enaltecendo o trabalho feito pelos seus pares, não hesita no entanto em afirmar no seu blogue que «tarda um decidido e substancial investimento público nesta área aqui assim em apreço, parece-me. E, não tenhamos ilusões: há certo tipo de realizações que tem de ser o Estado a empurrar. Mormente nestes tempos em que o privado puro e duro está, um pouco por esse mundo fora, acantonado a tremer de sustos mil. Ou seja, para que a Cultura venha a carburar em termos “industriais” é preciso que a mão do Estado entre, sem receios, sem mais adiamentos. Como investidor, se se quiser. Ainda que promovendo parcerias diversas. Mas é preciso não alijar para outros o que tem de ser feito pelo próprio Estado. Basta pensar na rede de instituições culturais... públicas. Ou no quanto é ainda minguado o nosso parque de unidades culturais.» Acho estas palavras são de uma sensatez que merece ser realçada, não só porque estamos a falar de um homem que foi titular da pasta da Cultura, como também porque é da mesma cor política do actual Governo.

À pergunta «e a Cultura, senhor Primeiro-Ministro?», confesso, e para encerrar este assunto (pelo menos para já), que gostaria de ter ouvido do maior «acreditador» militante de Cabo Verde – aquele mesmo Primeiro-Ministro que acredita, que sonha, que quer mais, que vê obra onde outros só vêm deserto – e dito com o seu entusiasmo tão característico como cativante, qualquer coisa como isto:

«Na Cultura há muito por fazer. Temos que investir na educação artística, e estamos a fazê-lo; temos que investir na estruturação de locais para a cultura e aqui há ainda um longo caminho a percorrer, em todas as ilhas do arquipélago. Um país como Cabo Verde tem que ter um Teatro Nacional ou uma Companhia Nacional de Dança, por exemplo. Temos que dar incentivos aos que queiram arriscar no negócio da exibição de filmes. Eu não posso chegar lá fora e dizer que não há um único cinema no meu país! No campo da edição, avançamos muito, mas temos que procurar entender porque se lê tão pouco e desenvolver programas efectivos de incentivo à leitura. Temos que incentivar um real desenvolvimento das artes plásticas contemporâneas. E o meu sonho maior, como Primeiro-Ministro de um país como o nosso, que vive e respira a música por todos os poros, é poder ver tocar, num grande Auditório Nacional, bem gerido e equipado, uma Orquestra Nacional a tocar versões sinfónicas dos nossos melhores compositores. Nesse momento poderia dizer, a mim e aos outros, que parte substancial da minha missão estaria cumprida.»

Não me parece mal, numa área onde o Estado deve assumir também as suas responsabilidades, ser tão ambicioso como se é, e bem, em todas as outras áreas de governação. Não faz sentido que sempre que chegamos à vertente cultural haja uma espécie de trauma, preconceito ou medo, de se estar a alimentar uma «rede de parasitas que não tem mais nada que fazer e vivem à custa do erário público», menosprezando a importância dos criadores na saúde mental da nossa Nação.

E uma nota final: naquela pequena intervenção inventada, repete-se o termo «Nacional» 4 vezes. Está muito bem. Como dizia uma publicidade de uma marca de massas alimentícias, afinal, o que é Nacional é bom!

Conversas de Café de 22 de Outubro de 2008