quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

Conversas de Café 04



Os Sítios da Cultura I

O Estado cabo-verdiano tem hoje um conjunto de infra-estruturas próprias que, embora manifestamente insuficientes, lhe poderiam à partida garantir um conjunto de valências muito palpáveis, de forma a melhor cumprir e fazer cumprir alguns dos pressupostos e objectivos que justificam a existência de um Ministério da Cultura, ou seja, um departamento governamental com um razoável grau de autonomia e intervenção, porque não vinculado a nenhuma outra pasta ministerial. 

Já disse aqui que não tenho por hábito “mandar bocas” só por recreio e que pessoalmente até gosto mais de reflectir sobre possíveis soluções, que alguns julgarão completamente impraticáveis por questões orçamentais, do que apontar o dedo a seja quem for ou chorar sobre os problemas que estão à frente dos nossos narizes e que, portanto, não constituem novidade para ninguém. Sempre defendi que a existência de problemas, de carências, de dificuldades, deveriam servir, em primeiro lugar, como motores na procura de soluções. Que se vejam os problemas e as claras deficiências do sector da Cultura não a montante, mas sim a jusante, ou seja, transformar as dificuldades em oportunidades. 

Quando falamos de oportunidades, há logo quem venha abanar uns papeis cheios de números e de obstáculos impossíveis de ultrapassar, defendendo que mais vale ficarmos quietos porque nem pensar em conseguir arranjar a verba necessária para tantos delírios. Que me desculpe quem assim pensa: desde que soube que ao Ministério da Cultura cabia uma dotação de 3% do bolo do Orçamento Geral do Estado – um sonho irrealizável para a grande maioria dos Ministros da Cultura de qualquer outro país – mais convencido fiquei de que o problema da aplicação de uma politica pública para a área das Artes e da Cultura em Cabo Verde está muito mais na forma como o dinheiro está a ser gerido do que na quantidade deste que é colocado ao serviço do titular da pasta e sua equipa. 

É nesta perspectiva de comentário construtivo que vou deixar aqui algumas reflexões sobre como penso que poderiam ser ocupadas algumas das infra-estruturas ligadas ao Ministério da Cultura, a maioria das quais continua, hoje e depois de vários anos de funcionamento efectivo, a funcionar sem qualquer enquadramento orgânico e/ou legal (um outro assunto que não cabe no âmbito deste texto). Vamos falar, na presente crónica, do Auditório Nacional Jorge Barbosa, do Palácio da Cultura Ildo Lobo e do Arquivo Histórico Nacional, todas estruturas situadas na cidade da Praia. Num próximo texto, falaremos do Centro Cultural do Mindelo, do Museu de Arte Popular e da réplica da Torre de Belém, no Mindelo. Finalmente, numa terceira parte, procuraremos dar conta da nossa opinião relativamente aos locais existentes fora dos dois maiores centros urbanos do pais, com destaque para o caso paradigmático da Cidade Velha.


Auditório Nacional Jorge Barbosa

Já o disse várias vezes publicamente: sou frontalmente contra a entrega a um privado da gestão do Auditório Nacional. Não faz qualquer sentido. A solução para esta infra-estrutura seria a entrega da mesma a uma equipa multi-disciplinar, ligada às Artes do Espectáculo, com provas dadas e capaz de criar uma produção própria digna de, por exemplo, representar o Estado em importantes efemérides, visitas protocolares e de Estado de outros países ou, mais importante, de promover um programa de acesso global da população – da Praia, mas não só – a bens de consumo cultural. Com o trabalho da Companhia Raiz di Polon, que seria uma excelente base para começar algo do género, e juntando algumas das pessoas que tem desenvolvido um trabalho meritório no campo das artes cénicas, à volta do actor e encenador João Paulo Brito, mais um gestor cultural minimamente preparado, teríamos uma formação inicial do que poderia ser uma Companhia Nacional de Teatro e Dança. Esta companhia seria obrigada a produzir, pelo menos, seis espectáculos por ano, dois de dança, dois de teatro e dois multidisciplinares, estes últimos envolvendo músicos nacionais, contratados para o efeito. O espaço poderia ser utilizado, durante parte do dia, para a promoção de uma Escola de Iniciação ao Teatro e Dança, que teria como um dos objectivos, desde logo, o recrutamento de novos e futuros valores, que poderiam alimentar a própria companhia nos anos vindouros. Nos espaços do Auditório poderiam funcionar ainda mais duas valências importantes: uma de artes plásticas e fotografia, utilizando o hall e os corredores contíguos para a apresentação de exposições de artistas nacionais consagrados e novos valores em afirmação, e outra utilizando o auditório como local para a projecção de documentários, de produção nacional e internacional, também envolvendo em paralelo as escolas, de forma a levar um maior número possível de jovens a ver, discutir e comentar os documentários vistos e levar esse conhecimento e essa experiência para a sala de aula. 

A verba dispendida seria muita? Talvez, mas façam as contas, muito por alto, aos ganhos mensuráveis: seis espectáculos garantidos, prontos para serem vistos por milhares de cidadãos em condições a acordar entre a estrutura do Auditório Nacional e as escolas ou as Universidades existentes, com as empresas públicas ou privadas, ou ainda para viajar e representar o Estado – neste último caso, de cada vez que houvesse uma importante viagem do Presidente da República, por exemplo, para além de empresários, nunca olvidados nestas ocasiões, sempre se poderia levar alguma mostra sustentada do que é a produção cultural em Cabo Verde, porque as relações bilaterais entre dois países não se podem resumir apenas às questões económicas; teríamos, em pleno funcionamento, uma escola de formação básica para crianças e jovens, nas áreas de teatro e dança, transformada numa mina para descoberta de futuros talentos; e, last but not least, uma infra-estrutura totalmente dinamizada e voltada para o cidadão, como deve ser, por definição e natureza, um espaço que se quer público.


Palácio da Cultura Ildo Lobo

Tenho que dizer isto: na última visita que fiz ao designado Palácio da Cultura Ildo Lobo fiquei chocado com o ar de abandono e de não aproveitamento de um edifício que, não só custou uma fortuna ao Estado de reabilitar, como tem características físicas e uma localização privilegiadas, de forma a poder albergar algum projecto pioneiro e verdadeiramente revolucionário. Na actual conjuntura, o passo a dar seria lógico: assinatura imediata de um convénio com a Universidade de Cabo Verde e criação, com carácter de urgência nacional, de uma equipa para se avançar, de imediato, com uma licenciatura na área da música em Cabo Verde. Fazendo jus ao seu nome, o Palácio da Cultura Ildo Lobo passaria a albergar a Escola Superior de Formação e Estudos Musicais, da Universidade de Cabo Verde. Mais nada! O local tem salas prontas para ministrar aulas, teóricas e práticas, tem instrumentos prontos a serem utilizados por quem sabe, tem locais fantásticos para socialização de alunos e professores, tem um pátio protegido e um pequeno auditório ideal para pequenos concertos, apresentação de exercícios de alunos ou para hapenings musicais, que poderiam transformar aquele espaço num verdadeiro ninho de formação, promoção, confraternização e socialização de um ensino musical metódico, tecnicamente preparado e pedagogicamente consequente. Querem entregar os espaços do Palácio Ildo Lobo para exploração de privados, para quê? Para depois andar a Universidade de Cabo Verde à procura de um local para um projecto já em curso, possivelmente pagando uma fortuna pelo seu aluguer, quando o próprio Estado tinha um lugar muito mais apropriado e que além disso, tinha sido baptizado com o nome de uma das maiores vozes da história da nossa música? Estou certo que Ildo Lobo, esteja onde estiver, iria ficar feliz ao saber que aquele lugar se havia transformado num local de conhecimento e prática no campo musical, que tanta riqueza e benefícios já deu a Cabo Verde. Por isso mesmo, a quem apanha de imediato a máquina de calcular para nos mostrar o quanto impossível é esta sugestão em termos financeiros, pergunta-se: não é tempo já de o Estado retribuir e dar à música um pouco do muito que tem recebido dela todos estes anos?


Arquivo Histórico Nacional

O Arquivo Histórico Nacional (AHN), é o único, destes três casos, que tem existência legal e é considerado na orgânica oficial do Ministério da Cultura sob a forma de Instituto, e é aqui mencionado por uma outra razão, que explicarei já de seguida. Este organismo público é, por natureza, responsável pela preservação do património histórico e arquivístico de Cabo Verde tendo entre outras atribuições, recolher, inventariar, seleccionar, conservar, tratar e promover o património histórico arquivístico. 

Ora, tendo em conta estas funções, deveria, na minha modesta opinião, ser considerada como sub-estrutura do AHN, uma Cinemateca e um Centro Nacional de Fotografia. Existem alguns fotógrafos, entre eles alguns com longa tradição familiar na área, que tem um riquíssimo espólio de fotografia cabo-verdiana e mesmo de filmes, que necessitam de ser, sob pena de se perderem para sempre, urgentemente recolhidas, catalogadas, tratadas, informatizadas, protegidas, a bem da memória visual e imagética da Nação. A percepção que tenho é de que o trabalho feito na área da recolha e tratamento documental é excelente, mas ainda insuficiente. Aqui pouparíamos em verbas, porque não se propõem a existência de novos organismos e institutos, mas sim a consideração da importante parcela documental que é a imagem, fixa ou em movimento. Além disso, parece-me que, apesar de algumas iniciativas terem sido promovidas nos últimos anos, o AHN carece de uma maior abertura à sociedade civil com a promoção de actividades públicas, como conferências, encontros e exposições temáticas que poderiam ser realizadas em conjunto com a Universidade de Cabo Verde, por exemplo, vocacionada também ela para a promoção do conhecimento e da divulgação da nossa história. 


(Continua na próxima crónica com: Os sítios da Cultura II)