quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

Conversas de Café 06



Outside & Inside

Outside

A série televisiva 24 horas, que já vai na sua sétima temporada, teve um sucesso estrondoso em todo o mundo e, no que me diz respeito, marcou-me de uma forma positiva e negativa em dois aspectos. Pela positiva, por ter quase que "adivinhado" a possibilidade de ter um afro-americano na Casa Branca, quando na primeira temporada surge com o senador e principal candidato presidencial David Palmer, que na temporada seguinte não só é Presidente, como é um excelente Presidente. A ligação deste personagem com a actualidade é inevitável. Mas a série também marcou negativamente porque de alguma forma funcionou como um instrumento da banalização da tortura, já que o seu personagem principal, o agente Jack Bauer, nunca hesitou em utilizar métodos violentos e coercivos nos seus interrogatórios, secretos e ilegais, por estarem em causa assuntos de "máxima segurança nacional".

Toda a estrutura das várias temporadas, com a psicose do terrorismo e a forma de o combater a dominar os acontecimentos, só teria sido possível com o ambiente, as chantagens, psicoses e legislação criados durante os mandatos de George W. Bush nos Estados Unidos. Este bem que pode merecer o aplauso da página 7 do jornal A Semana, mas Bush e a sua administração, com o sinistro vice Dick Cheney à cabeça, foi o principal responsável por muitas das violações dos direitos humanos ocorridas durante os últimos anos, inclusive dentro do seu próprio território nacional. Aliás, a principal vantagem destes oito anos, se é que se pode escrever isto assim de animo leve, foi o facto deste reinado de Bush ter sido tão mau, que fez com que um mais que improvável candidato não só vencesse as eleições, como aparecesse aos olhos do mundo como um novo Messias. Miguel Sousa Tavares, na sua última crónica no jornal português Expresso, diz isso mesmo, e com todas as letras:

“Mas foi preciso que o governo de Bush fosse de tal maneira calamitoso aos olhos de todos, para que a grande nação americana, feitas de brancos, de negros, de latinos, de asiáticos, percebesse que o que agora estava em causa era a própria sobrevivência dos Estados Unidos. E, por isso, a mensagem e a imagem de radical mudança de paradigma protagonizada por Obama foi crescendo aos poucos, como uma bola de neve, até ele próprio adquirir quase uma dimensão de Messias, para o que, obviamente, não pode estar preparado. Como se tantos e tantos anos de malfeitorias pudessem ser redimidos e reparados por um simples acto de contrição colectivo! Não podem: o que Bush destruiu paulatinamente demorará anos e anos a reconstruir.”

Ora, Barack Obama ainda nem teve tempo para aquecer a cadeira da sala oval da Casa Branca mas parece querer dar a volta a esta realidade o mais depressa possível. Senão vejamos o que o novo presidente conseguiu, durante o dia que passou:

1. Ordenou o encerramento, o mais depressa possível, dos centros de detenção que a CIA mantém actualmente no estrangeiro para os suspeitos de terrorismo;
2. Decretou igualmente que os Estados Unidos da América ajam em conformidade com as convenções de Genebra no modo de actuação para com os prisioneiros de guerra. Essas convenções, e a sua aplicação aos suspeitos de terrorismo, eram contestadas pela Administração Bush. Esta medida é claramente um afastamento das técnicas de interrogatório empregadas até ao momento pela CIA, denunciadas em variadíssimas ocasiões como actos de tortura;
3. Decretou o encerramento do centro de detenção de Guantánamo, Cuba, dentro de um ano, marcando definitivamente uma ruptura com a anterior política de luta antiterrorista de Bush. Obama assinou o decreto que põe fim a Guantánamo na Sala Oval, rodeado de militares na reserva, dando maior simbolismo ao acto.

Está-se mesmo a ver que os homens que inventam os argumentos para séries televisivas como o 24 horas, tem que mudar a direcção das suas bússolas ideológicas. Como foi escrito, com uma certa piada, num blogue português, "a Sala Oval tem agora um presidente que faz questão em cumprir promessas. O presidente Obama arrisca-se a criar um grave precedente para todos os políticos, e não só americanos." Estranho não é? Em menos de 24 horas e já anda por aí a cumprir promessas. Apenas um bom começo ou vem mesmo aí uma nova era?

Inside

Nestes dias que se fala tanto de crise não seria mal falarmos um pouco de outras crises que teimam em não nos querer largar, de tal forma estão enraizadas na nossa forma de ser. Uma questão de mentalidades, dirão uns. Só com uma revolução geracional poderemos ultrapassar isto, dirão outros. Pois muito bem, assim sem muitas papas na língua, vivemos neste momento, de forma evidente, duas outras crises: a crise da aceitação da critica e a crise da falta de humor. Vamos falar hoje apenas da questão da critica, mas sem antes deixar aqui uma frase de Mário Lúcio Sousa, a propósito da segunda referida: ““Depois da fome, duas desgraças podem arrasar uma Nação (falo de Nação e não de Estado, país ou Pátria): A morte do Teatro e a agonia do Humor. A música e as outras formas de expressão até que podem ser bravos exercícios de solidão. Inclusive o amor está concebido para ser executado a mano solo - por isso Deus a cada um deu o seu inseparável sexo - e é o monólogo a mais antiga das sabedorias. Mas, o teatro e o humor são vícios que não se praticam a sós. Ninguém ri dos seus infortúnios. Prova desse milagre é que cócegas em sovaco próprio não arrancam gargalhadas. “

Mas o que não tem nenhuma piada mesmo é a falta de equilíbrio com que recebemos uma critica, seja ela boa ou má. É uma mentalidade que faz com que seja complicado, e haja mesmo que se sinta condicionado por causa disso, elogiar ou criticar seja o que for, seja em que circunstância for, sabendo que ao fazê-lo se está sujeito a ser de imediato tachado publicamente de arrogante ou lambe botas. Assim, e de forma resumida, quem critica negativamente, é porque está cheio de inveja ou faz dessa critica um instrumento de vingança pessoal; se elogia, é porque é um amigalhaço, primo, cunhado ou alguém a quem deve um favor pago desta forma. Isto também tem uma outra vertente de análise muito local, e que urge alterar: elogiar alguém, de determinada área profissional, não implica desconsiderar todos aqueles que trabalham ou exercem a sua profissão na mesma área. Elogiar o trabalho de um artista plástico, por exemplo, não implica que se esteja a afirmar que todos os outros não tem valor. Mas é um pouco isso que acontece. “Então aquele tipo está a elogiar a Luísa Queirós, então e eu?”. “Não entendo o que tem ele contra mim, para dizer tão bem da pintura do Tchalé Figueira!”. Acho que nem é preciso estar a explicar o quanto tudo isto acaba por cair no ridículo, mas a verdade é que não temos a mínima capacidade para encaixar uma critica, seja para nós, seja para os outros. Quando é para nós, e se a critica é positiva, ficamos logo com o rei na barriga, o ego multiplica-se à máxima potência, o nosso umbigo passa a ser, por inerência, o centro do Universo. Os que assistem de fora bem se podem roer de inveja, bem podem falar que fulano ou sicrano foi colega de escola, pouco importa. Se a critica é negativa, a reacção dá-se por três fases: numa primeira aceitamo-la, como quem leva um tiro e ainda não sente a dor real do ferimento. Essa é a segunda fase: começamos a remoer o que foi dito, e caramba!, dói como tudo, e começamos a pensar, olha que isto não é bem assim, fomos mal entendidos; até que alcançamos a terceira e última fase, com o aparecimento vulcânico de uma fúria latente, resumida na simples frase “o que é que este energúmeno pensa que é para estar a criticar o meu trabalho ou a minha pessoa?!”

Devo sublinhar que isto não é apenas, certamente, característica nossa. Talvez faça parte da natureza humana ser-se assim. Mas que o cabo-verdiano encaixa mal, lá isso encaixa. E aqui quero sublinhar que no meu caso, que sou criador da área do teatro, não sou nada imune ao que aqui foi escrito nem me ponho de parte desta análise. Antes pelo contrário, o meu ego é um animal terrível que umas quantas vezes foge ao controle do seu dono e as fases de aceitação, dúvida e birra, de uma critica ao meu próprio trabalho já fizeram parte de experiências vivenciais e porventura continuarão a fazer. Isto é também uma auto-critica, portanto. Quando ler este texto impresso no jornal e me encontrar com a minha imagem no espelho, vou certamente perguntar-me, “quem é que este obnóxio pensa que é para estar a criticar o meu trabalho ou a minha pessoa?!”.

Seremos com toda a certeza o maior inimigo de nós próprios, se não melhorarmos este aspecto e lutarmos contra ele. Percebe-se, pois, que hajam tão poucos a escrever abertamente sobre o que os rodeia nestas ilhas afortunadas. E os que o fazem são logo adjectivados, de serem isto ou aquilo. Deixem-se lá de tretas. Ouçam. Aprendam, mesmo com as criticas que considerem injustas ou mal intencionadas. Há sempre alguma lição a tirar de alguém que utilizou algum do seu tempo para fazer um julgamento critico da nossa actividade. Mesmo que seja maldosa ou graxista. Mas não partamos desse pressuposto. E, sobretudo, encaremos tudo isto com mais desportivismo. Falem bem de mim, falem mal de mim. Mas falem.

1 comentário:

Unknown disse...

Não sei se a bloguisse é uma necessidade com o seu quê de nascisismo, um aceno, como quem diz
"estou aqui!", uma fome de dizer e de escutar, uma ilha com tendencias para arquipélago, um canto do tamanho do infinito ou este, reduzido à dimensão de um mero ponto de encontro...
Tudo para apresentar ARROZCATUM, que não vai nada mal antes de um bom café, mesmo margoso.
Parabéns.
Zito Azevedo